Nossa história não termina agora!
Hoje eu fui almoçar com a minha guerreira mor. Você que já leu ou está lendo o livro sabe de quem estou falando.
Cheguei lá e a encontrei deitada na cama, a mesma cena sombria, que agoniza minha alma nesses últimos meses.
A cada visita que faço carrego em meu peito a esperança de voltar a devolver-lhe mais um faísco de chama divina.
Dura realidade...
Hoje a encontrei bastante inchada, o corpo todo avolumado e tentei fazê-la rir:
-Você tá gordinha hein minha guerreira? O que foi? Andou comendo bastante?
Raquel me explica que é efeito da cortizona, receitada pelos médicos após sua última internação devido à uma infecção nos pulmões.
Percebo sua boca ressecada e logo tento animá-la para irmos almoçar na mesa:
-Não Fá, eu não quero comer nada, meu estômago tá todo embrulhado.
Meu coração fica mais apertado.
Me aproximo devagar, toco em seu rosto cansado, digo-lhe que está linda e ela imediatamente abre um sorriso amigo e nossos braços entrelaçam nossos corpos, como se esse fosse o último abraço.
Tento esconder as lágrimas teimosas. Não quero a deixar preocupada.
Desisto de leva-la até a mesa, peço à Raquel que traga sua sopa.
Ela me pergunta da Ju e eu digo que está na Austrália, daí ela sorri e me pede baixinho:
-Você me leva pra Austrália? Quero tanto ver a Ju e quero ver um Canguru de perto.
Prometo-lhe que sim e logo uso essa ferramenta ao meu favor:
-Mas você só poderá ir comigo pra Austrália se ficar bem forte, por isso tem que comer um pouco.
-Não Fá, não tenho vontade.
Chantageio com um tom mais agressivo, para ela ver que estou furiosa:
-Se não comer não vai ver Canguru nenhum!
Imediatamente ela se levanta, encosta na cabeceira, eu a desviro pro meu lado da cama e sinto uma compaixão tão grande que nem consigo explicar aqui direito. Retenho as lágrimas, coloco meu olhar firme sobre o dela e falo mansinho, num tom divertido.
-Abre a boca que o aviãozinho da Austrália tá chegando.
Ufa, consigo fazê-la engolir 20 colheres da sopa de legumes e macarrão que a Raquel fez com tanto carinho, mas com pouquíssimo sal.
-Tá gostoso vó?
Ela responde com a sinceridade de uma criança:
-Tá horrível, não tem sal nem açúcar, não quero mais.
-Só mais uma vai. Agora a última. Insisto e consigo.
E assim foi o nosso almoço. Confesso que perdi a minha inseparável fome.
Mais tarde ajudei a Raquel a trocá-la. Ela fez xixi na cama. Sempre faz isso agora.
Colocamos o fraldão depois da limpeza geral.
Deitei ao seu lado, ficamos de conchinha, eu fiquei por trás dela, fazendo carinho nas costas e na cabeça.
Eu queria conversar como nos velhos tempos, queria instigar sua memória, que infelizmente está se desgastando também.
Perguntei se ela acreditava em outras vidas, ela disse que sim.
-Então o que a senhora acha que nós duas fomos em outras vidas?
Ela respondeu com uma rigorosa exatidão:
-Nós duas fomos irmãs.
Ai meu Deus...chorei, calada, mas chorei, introspectivamente chorei e me vi por dentro. Vi o quanto meu coração está triste...
Não há mais nada que posso fazer por ela.
É muito dolorido e comovente ver a minha guerreira assim.
Fica difícil de acreditar, mas é a realidade.
Ela disse que está no fim. Mas acredito que todas as pessoas que passam dos 95 acabam encontrando em cada dia a esperança de que sua conclusão final chegou, o epílogo da vida. E ficam ali, só esperando, mais um dia passar e a morte chegar.
Ao me despedir tentei animá-la mais uma vez lembrando-a que mês que vem é o aniversário dela – 98 anos.
-Olha fica bem fortinha aqui viu? Vou fazer um bolo e trazer um monte de pessoas que te amam, são seus fãs.
Ela sorriu agradecida
-Outra coisa, se você não ficar bem não vai pra Austrália comigo.
-Eu vou ficar bem sim Fá, eu faço tudo que você mandar.
Fui saindo sorrateiramente, andando de costas pra ficar mandando beijos, olhando em seus olhos até o último instante que nos separavam da porta do seu quarto.
Entrei no carro, e pela primeira vez fiz o trajeto até minha casa aos prantos...
O que me consola é que eu coloquei uma coisa na cabeça e na alma dela, antes de sair olhei em seus olhos e disse:
-Vó você será sempre lembrada, por muita gente, como a mulher mais guerreira que todos nós aqui conhecemos. Você deixou um legado lindo, que servirá de motivação para muitas e muitas gerações.
Antes de entrar no carro eu ouvir seu grito sussurrado lá de dentro:
-MULHERES GUERREIRAS!!!

